sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Testemunhos...

O toque das dez e cinquenta ecoou nos Blocos da escola. Peguei no Livro de Ponto da turma CEF – aquele dossiê desajeitado e sombrio que teima em espelhar o estado de decadência a que cheguei, ou a que chegámos todos, passados tantos anos (e bons) de serviço docente – e dirigi-me à sala de aula.
Metade do grupo esperava-me e seguiu-me, com passos lentos. Os outros não davam sinais de vida. Entrámos. Sentaram-se, enquanto eu abria a pasta donde retirava um livro de poesia. Escrevi um poema de Eugénio de Andrade no quadro para trabalharmos a estrutura formal. Passados quinze minutos, ouviu-se barulho no corredor. “Stôra, eles já chegaram. Posso ir abrir?” Alguém bateu à porta, com os modos habituais, ou seja, bruscamente.
O primeiro entrou, sem fazer referência à sua chegada em atraso. Arrastou a cadeira, ruidosamente, dirigiu algumas palavras a alguém da última fila, fez alguns gestos pouco adequados e sentou-se. “Podemos entrar?” Era o seguinte, que proferia aquelas palavras com a boca cheia de croissant. Acabou por desatar a rir, porque o inevitável aconteceu: metade da comida foi projectada para o chão da sala, devido à forma atabalhoada como falou enquanto mastigava. Olhou para mim e calou-se. Percebera – que milagre – a triste figura que fazia no momento. Os outros tinham, entretanto, entrado. Alguns guardaram os bolos que tinham na mão, em cima das carteiras, mas não ousaram contradizer-me, numa atitude que poderia ser de rara lucidez, não fossem os olhares trocados e os risos estridentes que soavam de vez em quando.
Meia hora depois, fartos de me ouvir dissertar sobre normas de conduta, regras sociais e noções de cidadania, levantaram-se e saíram ao som do toque da campainha, de novo não se esquecendo de arrastar as cadeiras, ao mesmo tempo que trocavam “piropos” e ameaças uns com os outros “lá fora vais ver como é…”, outros “lá fora parto-te os c.”.
A aula até correu bem…bem melhor do que todas as outras em que tentei leccionar conteúdos programáticos. Nessas, expressões como “ó stôra, nem pense nisso! Vamos dar outra coisa.”; “Que é que a gente tem a ver com isso?”; “Que é que tá aí a escrever? “Hás-de?” Que é isso? Atão não é hádes? E porque é que não? Porque é a gente tem de decorar isso? A stôra também tem a mania que sabe mais que os outros. Acha que eu vou dizer isso assim em casa ou com os amigos? Até gozavam. Deixe-se disso!” são habituais. O problema é que enquanto o aluno se expressa desta forma acompanhada de gestos delicados, tais como a colocação da perna em cima da cadeira ao seu lado, ou levantando-se para assumir a sua indignação, os outros riem sem parar…
Claro que esta aula teve lugar já há algum tempo, quando eu ainda cumpria, escrupulosamente, as directivas que recebia: nada de pôr alunos na rua, nada de marcar faltas, nada de entrar em confronto, entre muitas outras. Agora melhorou, ou melhorei eu o estado de coisas, se me faço entender! Estou-me nas tintas, ou arrisco-me a não responder por mim, um dia destes…
E aquele dossiê que teima em fitar-me com ar trocista!

Maria Santos